Nesses dias, submetidos ao isolamento social em razão da pandemia do novo coronavírus, há mais espaço interior para decantar muitas vivências. As festividades do domingo das mães e a proximidade da celebração dos 85 anos de vida de minha mãe provocaram em mim algumas recordações. Reconheço que a memória agradecida é fonte de uma vida serena e saudável. Não tenho medo das lembranças, mesmo tristes. São um modo de visitar o passado que contribui para o balanço das escolhas, para ver as conquistas e fracassos, para contemplar rostos e marcas que são parte da história pessoal.
Minha mãe, ao nascer em Juiz de Fora, em junho de 1935, primogênita do jovem casal João e Rita, recebeu o nome de Maria de Lourdes. Depois dela viriam outros sete filhos. Viveu sua infância na luta pela sobrevivência. Entre os trabalhos infantis tão comuns daquela época, para ajudar a manter a família, ela teve de aprender bem cedo a cozinhar, a catar lenha e a trazer os feixes para casa, carregando-os sobre a cabeça, e, ainda, a carregar almoço para uma tia que trabalhava numa fábrica. De pés no chão levava a marmita com a comida quentinha. Adolescente, foi também empregada numa fábrica de tecidos.
Casou-se aos 19 anos com aquele que seria seu companheiro de vida por 61 anos. Com os três primeiros filhos, ela e Emílio – esse era o nome dele – passaram os anos mais difíceis para sustentar a pequena família. Alguns anos depois chegaram outros dois filhos. Para cuidar dos cinco filhos – três meninos e duas meninas – escolheu o exaustivo trabalho de casa. Com especial habilidade para a cozinha, encontrava tempo para costurar nossas roupas, tecer os agasalhos de tricô, cuidar de suas plantas. Ainda hoje faz essas atividades com esmero.
No coração de minha mãe a fé foi plantada com raízes profundas. Creio que pela fé ela se tornou uma mulher forte, capaz de passar por momentos muito difíceis, tão comuns às famílias. Desde minha infância a vejo fiel às orações de cada dia, especialmente à noite. Sempre foi assim. Depois que todos já estão acomodados, no silêncio da noite, ela se senta à beira da cama e faz suas orações e suas leituras espirituais. Sobre a cômoda de seu quarto estão as pequenas imagens de sua devoção. E, antes de se deitar, costuma conferir se as portas e janelas estão fechadas, as luzes apagadas e se todos estão cobertos. Se há alguém a tossir, não se retém. Levanta-se e providencia um xarope ou chá.
A fidelidade à sua escolha matrimonial teve os mais belos e difíceis dias no acompanhamento da enfermidade de meu pai. Diagnosticado com Alzheimer, ele foi mudando lentamente de comportamento. Na fase mais aguda e dolorosa, ele foi desconhecendo os filhos. A última lembrança lúcida dele era a esposa, Lourdes. Quando a desconheceu, foi hospitalizado. Dias após seu falecimento, em conversa comigo e com uma de minhas irmãs, ela disse: “Nossas tristezas são diferentes. Vocês perderam seu pai. Eu perdi o companheiro de toda minha vida”.
Minha mãe é essa mulher simples, firme, humana, generosa, atenta a tudo. Transmitiu a nós, seus filhos, valores fundamentais para a vida. Talvez o necessário isolamento dessas semanas não me permita abraçá-la no dia 2 de junho, dia em que completará 85 anos. Com afeto e gratidão, por essa singela homenagem, eu a abraço e a beijo filialmente.
+ João Justino de Medeiros Silva
Arcebispo Metropolitano de Montes Claros
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